CAIXA LIVRE #4. Deus e o diabo na Rocinha
Exposição e documentário disponível em streaming registram na história o trabalho de Primo da Cruz; diálogo crítico com o projeto de lei que ataca Oruam.
[ENGLISH BELLOW]
God and the Devil in Rocinha.
“Exhibition and documentary available for streaming tell the history of Cristiano Abreu de Almeida's work, known as Primo da Cruz; it´s work creates a critical dialogue with a proposed draft law that targets Oruam.”
O dono do MAR
Cristiano Abreu de Almeida, conhecido como Primo da Cruz, recebeu esse apelido pela amizade de longa data com o artista Maxwell Alexandre. Nascidos e criados na favela da Rocinha, aproximaram-se por terem sido vizinhos. Quando Cristiano saiu da prisão depois de cumprir uma pena de oito anos, encontrou no grupo do seu “primo” uma forma de se reintegrar à sociedade. Frequentou os encontros da Igreja do Reino da Arte, também conhecida como a A Noiva, que realizava cultos na Rocinha desde 2017, e logo começou a produzir e vender suas pinturas e esculturas. A exposição Dono do MAR: Primo da Cruz, aberta até o dia 13 de abril no Museu de Arte do Rio (MAR), celebra o seu trabalho com a apresentação de cerca de cinquenta obras.
Segundo Marcelo Campos, curador-chefe do MAR, a exposição de Primo se insere na política curatorial do museu de não fazer distinção entre artistas ainda desconhecidos do grande público e artistas já consagrados. Em suas palavras: “Primo, em vida, não teve a possibilidade de galgar uma carreira nas artes visuais condizente com o impacto que suas obras causaram em quem o conheceu, conviveu com ele, o colecionou e, sobretudo, com jovens artistas que se inspiraram nos seus trabalhos”. Primo realizou uma produção vasta e inventiva no curto período entre o reencontro com Maxwell Alexandre e sua morte abrupta aos 36 anos, em 2020, sem causa conhecida.
Em suas esculturas e pinturas, o desejo de retratar a realidade da favela, do crime e da violência policial, convive com a aparição de figuras míticas e religiosas. Primo afirmava que “a bíblia é um GPS para nossa vida”, mas nem sempre seguia os pastores. Preferia desvendar por si os caminhos da espiritualidade, o que o levou a necessidade de criação de um imaginário singular. Essa fé autônoma convivia com a coleta de materiais variados que encontrava no seu entorno. O artista utilizava fragmentos de eletrodomésticos, pedaços de madeira, antenas parabólicas, telhas, panelas, bandejas, entre outros elementos que encontrava pelos arredores de sua casa. Com esse material único, elaborava imagens de elementos cotidianos da favela da Rocinha, como armas e camburões, em pé de igualdade com personagens de diferentes matrizes religiosas, como versões de figuras que representam a morte e de Yemanjá. Primo produziu, assim, uma figuração tão ancorada no território e na concretude de suas condições materiais de vida, quanto capaz de dialogar com tradições pictóricas milenares de iconografias religiosas.
Tanto na cadeia, como na favela, Primo esteve submetido ao choque com real que se dá no convívio direto com experiências traumáticas e na iminência constante da morte. Nesses contextos de vivências tão avassaladoras, que desafiam a compreensão humana, muitas vezes, o ato de representar só se torna possível a partir da construção de uma distância. De alguma forma, resguardando as evidentes diferenças de técnicas e repertório cultural, o gesto artístico de Primo lembra um pouco o do Bispo do Rosário. São artistas que, ao se relacionar com os materiais de acesso mais imediato, de algum modo documentam seus contextos de criação, mas não sem o ímpeto de desconfiná-los e recriá-los. Em outras palavras, são artistas que, para representar o cotidiano, tecem a invenção de um modo específico de produzir e organizar os sentidos e sensações do mundo.
Para quem não se lembra, Bispo do Rosário utilizava os materiais que estivessem ao dispor, como a linha azul dos uniformes das instituições psiquiátricas, talheres e ferramentas. Transformava os objetos que encontrava em linguagem, em suporte para se expressar. A artista Louise Bourgeois, quando teve contato com as criações de Bispo, em choque, comentou: "Minha costura é uma ação simbólica contra o medo de ser separada e abandonada. Nós percebemos no trabalho do Bispo que ele também tinha medo de perder o contato. Como Penélope, a Aranha, ele passou a vida inteira fazendo e desfazendo. Ele estava buscando uma ordem no caos, uma estrutura e ritmo do pensamento”. Parece que era também esse o exercício de Primo da Cruz, uma tentativa de instituir uma ordem em um contexto social que parece não prever lugar para sua existência. O artista, ao se desentender com agentes do mercado, chegou a queimar trabalhos em vida e desistir do circuito da arte para vender sua produção na beira da praia, ocupando – junto a tantos trabalhadores – os calçadões das prais da Zona Sul. Sua dignidade era inegociável e a prática artística um exercício vital.
Para quem se interessou pelo trabalho de Primo da Cruz, mas não está no Rio, vale a pena assistir ao documentário de Alexis Zelensky, disponível no streaming. Na versão de longa-metragem, vemos o trânsito de Primo nas instituições de arte. Como uma (rara) etnografia do campo, o filme mostra, de modo inédito, a complexidade hostil, muitas vezes invisível, da lida dos agentes de galerias e leilões com artistas periferizados. No filme há um registro também dos gestos de resistência de Primo — que se auto-exila do circuito por vontade própria — e de seu pensamento sobre o próprio trabalho e possibilidades de vida e fé apesar de tudo.
O diálogo entre Primo da Cruz e Oruam
Interessante que esta exposição esteja em um museu justo em um momento no qual políticos de extrema-direita protocolam um projeto de lei que supostamente visa proibir a apologia ao consumo de drogas e ao crime organizado em shows e eventos contratados pelo Governo Federal. A proposta, que surgiu após uma apresentação do cantor Oruam, ficou conhecida como “Projeto Anti-Oruam”. Em depoimento à CNN Brasil, Oruam expõe sua consciência histórica ao demonstrar que se trata de mais uma tentativa de criminalização não da arte, mas dos artistas periféricos, como sempre aconteceu no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro. Em suas palavras: “Eles sempre tentaram criminalizar o funk, o rap e o trap, coincidentemente o universo fez um filho de traficante fazer sucesso. Eles encontraram a oportunidade perfeita para isso, virei pauta política, mas o que vocês não entendem é que a lei anti-Oruam não ataca só o Oruam, mas todos os artistas da cena”. Em consonância com Oruam, o escritor Jeferson Tenório afirma que a lei expressa: “uma herança de um país escravocrata: o ódio pela arte produzida e forjada nas vivências negras”. Segundo o autor: Os autores da lei parecem ignorar a diferença básica entre uma elaboração estética e a vida real.
Os curadores da exposição de Primo da Cruz, que inaugurou em dezembro de 2024, já apresentavam respostas contundentes a essa falsa tentativa de associar qualquer representação da periferia (feita por pessoas periferizadas) à apologia ao universo do crime. Nas palavras de Clarissa Diniz sobre Primo da Cruz: “Ele fez da obra dele um lugar de uma enunciação sobre as estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais dos morros e em especial do universo do tráfico. O que não significa apenas uma apologia ao tráfico, mas uma crítica ao sistema que faz com que jovens como ele não tenham tido outras oportunidades na vida”.
A polêmica atual, já prevista tanto por Oruam, como pelos curadores da exposição de Primo, revela uma discussão talvez fundadora da arte brasileira, constantemente confrontada – de modo mais ou menos distante – com uma realidade de violência brutal. Parece que a interdição das manifestações culturais promovida pela extrema-direita não é relativa à representação da violência, presente em diversas séries televisivas atuais de grande orçamento e nas maiores bilheterias do nosso cinema, como Tropa de Elite (2007) e Cidade de Deus (2002). Lembrei do célebre manifesto Estética da fome, de Glauber Rocha, no qual o cineasta afirmava que: “enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como um sintoma trágico, mas apenas como um dado formal em seu campo de interesse”. Até hoje representações que reiteram o caráter miserável da realidade das periferias, quando feita de fora delas, circulam com aplausos e sem restrição. Por outro lado, no entanto, parece que o que incomoda é a afirmação de subjetividades inventivas e atos de criação feitos a partir da periferia. É o caso de Primo da Cruz, seu trabalho apresenta tantas camadas poéticas que não pode, de modo algum, ser tomado como representação direta da realidade e desafia qualquer entendimento simples de quem vê pela primeira vez.
A curadoria da exposição Dono do MAR: Primo da Cruz é assinada por Alexis Zelensky, Armando Antenore, Clarissa Diniz, Felipe Carnaúba e Maxwell Alexandre, além do acompanhamento curatorial da Equipe MAR, composta por Amanda Bonan, Marcelo Campos, Amanda Rezende, Thayná Trindade e Jean Carlos Azuos.
Para saber mais sobre o projeto CAIXA LIVRE, por Maria Bogado, leia aqui: https://caixalivre.substack.com/about
God and the Devil in Rocinha.
Exhibition and documentary available for streaming tell the history of Cristiano Abreu de Almeida's work, known as Primo da Cruz; it´s work creates a critical dialogue with a proposed draft law that targets Oruam.
The Owner of MAR (Museum of Art of Rio)
Cristiano Abreu de Almeida, known as Primo da Cruz, received this nickname due to his longtime friendship with the artist Maxwell Alexandre. Born and raised in the Rocinha favela, they grew close because they were neighbors. When Cristiano was released from prison after serving an eight-year sentence, he found in his 'cousin's group a way to reintegrate into society. He attended the gatherings of the Church of the Kingdom of Art(Igreja do Reino da Arte), also known as The Bride, which has been holding services in Rocinha since 2017, and soon began producing and selling his paintings and sculptures. The exhibition Owner of MAR: Primo da Cruz(Dono do MAR: Primo da Cruz), open until April 13 at the Museum of Art of Rio (MAR), celebrates his work with the display of around fifty pieces, many of them unpublished.
According to Marcelo Campos, chief curator of MAR, Primo's exhibition aligns with the museum's curatorial policy of making no distinction between artists who are still unknown to the general public and those who are already established. In his words: “Primo, in his lifetime, did not have the opportunity to build a career in visual arts that matched the impact his works had on those who knew him, lived with him, collected his art, and, above all, on young artists who were inspired by his work”. Primo produced a vast and inventive body of work in the short period between his reunion with Maxwell Alexandre and his abrupt death at the age of 36 in 2020, with no known cause.
In his sculptures and paintings, the desire to portray the reality of the favela, crime, and police violence coexists with the appearance of mythical and religious figures. Primo used to say that 'the Bible is a GPS for our lives,' but he didn't always follow the pastors. He preferred to uncover the paths of spirituality on his own, which led him to the need to create a unique imaginary. This autonomous faith coexisted with the collection of various materials he found in his surroundings. He used fragments of household appliances, pieces of wood, satellite dishes, roof tiles, pans, trays, among other elements he found around his home. With this unique material, he created images of everyday elements from the Rocinha favela, such as guns and police cars, on an equal footing with characters from different religious backgrounds, such as the devil and Yemanjá. Primo thus produced a figuration that was as anchored in the territory and the concreteness of its material living conditions as it was capable of dialoguing with millennia-old pictorial traditions of religious iconography.
Both in prison and in the favela, Primo was subjected to the shock of reality that comes from direct contact with traumatic experiences and the constant imminence of death. In these contexts of such overwhelming experiences, which often challenge human understanding, the act of representing only becomes possible through the construction of distance. In some way, while acknowledging the evident differences in techniques and cultural references, Primo 's artistic gesture somewhat resembles that of Bispo do Rosário. They are artists who, by engaging with the materials most immediately available to them, in some way document their contexts of creation, but not without the drive to unbind and recreate them. In other words, they are artists who, in order to represent everyday life, weave the invention of a specific way of producing and organizing the meanings and sensations of the world.
For those who don't remember, Bispo do Rosário used whatever materials were available, such as the blue thread of the psychiatric institutions' uniforms, cutlery and tools. He transformed the objects he found into language, into a medium for self-expression. When the artist Louise Bourgeois came into contact with Bispo's creations in shock, she commented: “My sewing is a symbolic action against the fear of being separated and abandoned. We saw in Bispo's work that he was also afraid of losing touch. Like Penelope the Spider, he spent his whole life making and unmaking. He was looking for an order in the chaos, a structure and rhythm of thought”. It seems that this was also Primo da Cruz's practice. The artist, in disagreement with market agents, even burned his works during his lifetime and gave up the art circuit to sell his work on the beach. His dignity was non-negotiable, and his artistic practice was a vital exercise.
For those interested in Primo da Cruz's work but not in Rio, it's worth watching Alexis Zelensky's documentary, available on streaming. In the feature film version, we see Primo's transit through art institutions. Like a field ethnography, the film uniquely reveals the complexity of how gallery and auction agents engage with peripheral artists, as well as Primo's acts of resistance, as he self-exiles from the art circuit by his own choice.
2.The Dialogue Between Primo da Cruz and Oruam
It's interesting that this exhibition is taking place in a museum precisely at a time when far-right politicians are proposing a bill that supposedly aims to ban the glorification of drug use and organized crime in shows and events funded by the federal government. The proposal, which came about after a performance by the singer Oruam, became known as the “Anti-Oruam Project”. In a statement to CNN Brasil, Oruam exposes his historical awareness by demonstrating that this is yet another attempt to criminalize not art, but peripheral artists, as has always happened in Brazil and especially in Rio de Janeiro. In his words: 'They have always tried to criminalize funk, rap, and trap. Coincidentally, the universe made a drug dealer's son successful. They found the perfect opportunity for this—I became a political target. But what you don’t understand is that the anti-Oruam law doesn’t just attack Oruam, it attacks all artists in the scene.’’
The curators of Primo da Cruz's exhibition, which opened in December 2024, had already presented strong responses to this false attempt to associate any representation of the periphery (created by marginalized individuals) with the glorification of crime. In the words of Clarissa Diniz about Primo da Cruz: 'He made his work a space for enunciating the social, economic, political, and cultural structures of the favelas, particularly the world of drug trafficking. This does not simply mean an endorsement of trafficking but rather a critique of the system that leaves young people like him with no other opportunities in life.'
The current controversy, already foreseen by both Oruam and the curators of Primo's exhibition, reveals a discussion that is perhaps the foundation of Brazilian art, constantly confronted - more or less at a distance - with a reality of brutal violence. It seems that the censorship of cultural expressions promoted by the far right is not related to the representation of violence, which is present in various high-budget television series and in some of the biggest box office hits of our cinema, such as Elite Squad (Tropa de Elite) (2007) and City of God (Cidade de Deus) (2002). I'm reminded of Glauber Rocha's famous manifesto Aesthetics of Hunger( Estética da fome), in which the filmmaker stated that: “while Latin America laments its general miseries, the foreign interlocutor cultivates the flavor of this misery, not as a tragic symptom, but only as a formal fact in his field of interest.” To this day, representations that reiterate the miserable nature of the reality of the peripheries circulate with applause and without restriction. On the other hand, however, it seems that what bothers is the affirmation of inventive subjectivities and acts of creation made from the periphery. The exhibition is curated by Alexis Zelensky, Armando Antenore, Clarissa Diniz, Felipe Carnaúba and Maxwell Alexandre, as well as curatorial support from the MAR Team, made up of Amanda Bonan, Marcelo Campos, Amanda Rezende, Thayná Trindade and Jean Carlos Azuos.